Crise de quê e de quem? – Por Anderson Bahia

“Deve ser a crise de vento, vó”. Com essa frase, minha sobrinha Luíza, de 6 anos, indicou um novo motivo para o tempo quente e abafado em Manaus. Calor na cidade que abriga minhas raízes está longe de ser novidade. Em raras madrugadas que se faz 23ºC, a sensação é de que neva. Inusitado mesmo é o argumento usado pela “Lulu”. Atônita de tanto ouvir a palavra como justificativa para problemas diversos, arriscou nela uma explicação para o tempo que se fazia numa noite em que o ar-condicionado estava parado por falta de energia na cidade.
A CRISE, de fato, é um vocábulo que visita os mais diversos ambientes da sociedade. Nos locais em que a política é o tema principal ou não. Para o desemprego do fulano, ela é a resposta. Para o insucesso da beltrana na venda de sua mansão também. E assim, a onipresença do termo vai confundindo tanto a linda “Lulu” como muitos quadros institucionais ou populares da política, que a utilizam para diagnosticar a causa dos males sociais, econômicos e também políticos.
Nesse vendaval de crise para todo lado, o causador dela vai curiosamente passando incólume. Pelo menos para a maioria da sociedade. Aponta-se o dedo para tanta gente como o responsável pelo caos que se vive e ele vai se restituindo, acumulando mais forças e se reinventando. Promove uma guerra ali e saqueia as riquezas de alguns países. Derrama um montante de recursos e, com a colaboração de grandes grupos privados de mídia, elege presidentes em outros. Promove sabotamentos e derruba presidentes em outros mais (olha o Brasil aí).
O capitalismo e o país que desde o século XX é CEP do seu império, os EUA, são muito sagazes. Há uma década vive uma das suas mais profundas crises, espalha miséria e desesperança para todo lado e segue forte. Pouco a pouco vai minando a multipolaridade que ainda marca a geopolítica mundial, formada bem recentemente, a fim de manter-se hegemônico. Para tal êxito, a guerra, os golpes que promovem em países variados e a fome que tem causado por si só não são suficientes. A legitimação do empreendimento capitalista é oriunda de uma ampla batalha ideológica que promovem diuturnamente. E, periodicamente, se renova em forma e conteúdo.
Dentre várias roupagens que essa disputa ideológica assume, uma delas é abraçar certos elementos oriundos de movimentos contestatórios sem abrir mão de sua estrutura principal. Assim, após a “Grande Depressão” de 1929, os EUA passaram a incorporar na estrutura do seu Estado várias características que os comunistas implementavam na União Soviética desde a Revolução de 1917. Por exemplo, o sufrágio universal e o investimento na qualidade de vida de todas as pessoas (independente de idade, raça e gênero), que estiveram presentes desde o primeiro dia em que os bolcheviques assumiram o poder, passaram a ser assumidos parcial e gradativamente no Tio Sam. A timidez que se comprometeram com essas temáticas ganharam concretude na seguridade social e no reconhecimento meramente formal de direitos àqueles que outrora eram negados. Enquanto a líder revolucionária Krupskaia arquitetava o modelo educacional que viria a transformar em pouco tempo a União Soviética numa potência tecnológica, só a partir da década de 1960 com o movimento pelos direitos civis que negros/as e mulheres norte-americanas passariam a ter um respaldo maior naquele país.
E diante da crise na atualidade, qual a façanha do capitalismo para legitimar-se? O evento “Fórum da Liberdade”, cuja edição de 2015 foi realizada na PUC, em Porto Alegre, deixa sinais mais do que claros. Uma das atrações principais daquele evento, a guatemalteca Glória Álvarez, foi a responsável por apresentar a linha do que tem se intitulado de “nova direita”: “Um direitista do século XXI, que já se modernizou, tem de reconhecer que a sexualidade, a moral e as drogas são problema de cada um”. Em outro momento, destacou: “O corpo é primeira propriedade privada que temos. Cabe a cada um de nós decidir o que fazer com ele”.
As chamadas “pautas comportamentais” e o multiculturalismo são a bola da vez para o liberalismo. Debatidas há décadas por partidos e movimentos progressistas, passaram a figurar também no discurso e em ações de militantes e instituições que se perfilam à direita. Questões como beijo gay, violência contra a mulher e negro/a como protagonista na tela da Globo, por exemplo, se dão pela força que seus movimentos ganharam na sociedade, mas também pelo esforço que a emissora faz de se adaptar à atualização da ideologia que sempre disseminou no país.
Isso significa que deveremos abandonar essas lutas e que passaremos a trata-las como conservadoras? Evidente que não. É preciso superar e muito às opressões de gênero, raça e a tal da guerra contra as drogas que mata a juventude negra e pobre à mando do Estado. São bem-vindos todos que se disponham a fazer tal enfrentamento. Contribui para abreviar o tempo de existência desses entraves estruturais e históricos que ainda massacram milhares de pessoas. A “vó” (D. Esmeralda) para quem “Lulu” se dirigia que o diga.
Mas como a luta política é dinâmica, outros desafios se impõem. É preciso ter muito claro até onde vão os pontos de convergência do discurso liberal com o de organizações pretensamente revolucionárias. Travar tais pautas de forma fragmentada e desconectada das contradições estruturais da sociedade é cair na armadilha de abandonar ou relegar a segundo plano o combate ao capitalismo. Limitar-se a denúncia de que o golpe em Dilma foi misógino porque se tratava de uma mulher na Presidência da República é abrir mão, junto com os liberais, de denunciar o desmonte de um projeto autônomo de nação, que por algum tempo reduziu a ação do imperialismo no nosso território e na geopolítica mundial ao compor um bloco independente (BRICS) e priorizar relações econômicas com a América Latina, África e Ásia. E, igualmente, focar uma crítica a Temer apenas como machista e racista, por não ter mulheres e negros no primeiro escalão do seu “governo”, é abandonar a possibilidade de enfrenta-lo como principal agente dos interesses internacionais no país e denunciar as consequências graves que isso tem diretamente ao conjunto do nosso povo, seja mulher, negro/a, LGBT, índio, homem, idoso/a, jovem ou criança.
A crise é obra do capitalismo na sua expressão mais dura: imperialista. É preciso atrair amplas forças sociais e políticas, que debatam temas variados, para fazer esse enfrentamento de forma unificada!
Por Anderson Bahia
Tags: Anderson Bahia, capitalismo, capitalismo EUA, Golpe no Brasil, Imperialismo Norte-Americano, Liberalismo, Pautas comportamentais, Temer, Temer golpe
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